Quando a mesmice já não era mais a mesma e a memória não queria mais
memorizar, despontou outro sentimento: a percepção. Essa estava ali guardada
como se guarda alimentos na geladeira. Pode até não ser consumido, mas será visto
em cada abrir da porta. A menina não gostava do seu nome, não gostava da sua
turma, para resumir, não gostava de si mesma. Quando tinha a oportunidade de
dizer um sim, fazia questão de dizer um não. Até dizia, mas depois de sustentar
o “não”. Seres humanos são estranhos, tão estranhos que estranham a si mesmos.
Ela já chegava cansada na sala. Até era um doce de pessoa. Sabia conversar,
tinha feições delicadas e num papo com as amigas não parecia ter cara de onça
amarrotada.
O professor levou a música “Epitáfio” para análise de texto. Quem sabe
assim a menina despertava para um mundo que gira? Não deu certo. Quem não sabe
conviver consigo mesmo acha que o problema são os outros.
— Devia ter complicado menos... Me importado menos... Com problemas
pequenos...
O professor leu em voz alta.
— Essas coisas são dos Titãs. – Disse a menina enfunada. – Eles nem tão
aí com a minha vida... Não conhecem os meus problemas... – Ela disse mordendo o
lápis.
Mário arregalou os olhos e puxou o
professor pelo braço.
— Professor, por que as meninas sempre acordam de mau humor?
Os alunos, que falavam todos ao mesmo tempo, se aquietaram para ouvir a
resposta do professor.
— Sei não, meu! – Disse o espantado professor sem saber dar a resposta.
Os alunos sorriram com o “sei não”. Estava ali uma resposta que o
educador não sabia.
— Eu nunca acordei de mau humor. – Mário concluiu com vergonha da irmã
que tinha cara de onça amarrotada.
— Ei! – Soou uma voz lá no fundo da sala. – Eu não sou menina e acordo de
mau humor. – Era o Mauricio se justificando.
— Então você tem problema. – Disse o professor com um riso. Atônito com a
pergunta do menino. – Eu tenho três filhos, um menino e duas meninas, confesso,
nunca vi o Julinho acordando de mau humor, mas as meninas...
— Foi mal, pessoal! – Justificou o Mauricio arrependido do que disse.
— Pô, véio! Tinha que abrir essa boca? Você não sabe o que tá falando...
— Cala a boca você, Edinho. – Disse o Mauricio todo espinhado.
— Pessoal, vamos concentrar no texto... – Clamou o professor.
— Tá vendo, Mário, o Mauricio ta com “Silvanéia”, ta todo irritado. –
Luan disse com desdém.
— Silvanéia! – Edinho pronunciou com ironia e sorriu com sarcasmo – um
novo nome para o mau humor. – Todos riram.
— Moçada, vamos voltar pro texto! Chega de conversas.
Silvanéia se encolheu na carteira. Não sabia desse seu comportamento.
Precisava mudar. O primeiro passo quando chegasse em casa era o de apagar do
celular a música “Epitáfio”. Era melhor excluir a música ou mudar de atitude?
Preferiu a música. Os adjetivos estranhos acrescentados nela eram um problema
de interpretação. Cada um vê o que pensa e, pensando, cria a sua razão.
Esqueceram a música. Todos tinham uma história para contar.
— Moçada, ontem eu vi um texto na internet, não o li todo, mas do pouco
que observei, guardei uma frase: “O orgulho é a única doença em que a pessoa se
sente bem enquanto à sua volta todos se sentem mal”. Reflitam um pouco mais sobre seus
comportamentos. – Disse o professor enquanto recolhia os textos.
A conversa que seguiu foi sobre a importância do bom humor. A menina não
se pronunciou, mas ouviu ali que o mau humor de manhã não era um problema
apenas dela, mas um problema de garotas.