domingo, 6 de dezembro de 2015
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
O CAQUI
Elijanique Savil
Quem foi que disse que a
fruta do pecado era a maçã?
Talvez
tenha sido.
A
maçã já teve seus dias de glória. Pode ser que alguém já tenha apreciado o
estranho sabor dessa fruta ao ponto de por ela perder o direito ao paraíso. Mas,
sua temporada de delícias já passou...
É até complicado para nós
definir o prazer que se tem em degustar essa iguaria porque sabemo-lo
inexistente.
Pois é. Para nós é o caqui. A
fruta do nosso pecado.
Recordo com imensa satisfação a
primeira vez em que provamos um...
Eram tempos difíceis. Não
tínhamos as regalias que se tem hoje. Comida bacana, lá em casa, entrava só em
ocasiões festivas. Se o mano fazia aniversário, por exemplo.
Fazia. Como assim?
Esse fazia, no imperfeito
refere-se a uma ação contínua. Algo que se repete constantemente.
E nós apenas mudávamos de idade
numa frequência anual.
Comemoração mesmo de
aniversário, o mano teve uma. A madrinha dele é que bancou a festa e arranjou
os convidados. Três ou quatro casais de amigos (dela) com seus filhinhos
metidos que vieram apenas comer do bolo. Não trouxeram presentes, não cantaram
parabéns, nem cumprimentaram o aniversariante. Não o julgaram digno de sua
simplória atenção. Aqueles pobres bossais nem imaginavam quão importante o mano
seria um dia.
Já era na verdade. Ainda que só
para mim...
A festinha dele teve um bolo
colorido, pintado de super-herói e cinco velinhas azuis. Tudo muito lindo. O
mano ficou feliz, apesar de ser pequeno demais para entender porque as senhoras
chegavam apertando suas bochechas e falando como retardadas com ele.
Presentes ele não ganhou
nenhum, porém a vizinhada veio toda espiar a ostentação da festa em homenagem
ao pobre ‘menino branco’ do bairro. Dia feliz que já vai longe. O mano hoje é
um grande homem.
Não conheci minha madrinha,
então, não tive chance de ganhar uma festa também na infância...
Entretanto, voltando ao nosso
pecado. Naquele dia a mãe ganhou um pequeno aumento de salário da patroa, um
bônus de final de ano e foi correndo comprar mantimento. A ajuda veio bem na
hora! Junto com o mantimento ela trouxe umas frutinhas meio vermelhas, meio
abóboras (ou seriam laranjadas?) na ocasião não sabíamos o nome, mas prendeu
nossa atenção. Mamãe guardou na geladeira.
“Pra amanhã menino. Agora não
que cê já vai jantar”!
Como se minha curiosidade
pudesse esperar.
O mano no meu pé: “pega só um
vai. Nois divide. Só pra espemerentar”! Ele ainda não falava bem essa palavra.
O jeito foi pegar um e, para
saborear o prazer do nosso delito, refugiamo-nos na rua. Aos olhos dos
passantes curiosos, mas protegidos das vistas nervosas da mãe.
Partimos aquela maravilha. A
casca alaranjada (era essa a cor afinal), de tão fina, lembrava uma pele macia,
sensualmente envolvendo aquela polpa carnuda que parecia mesmo chamar tentação. Uma calda muito doce escorrendo
na garganta, temperada pelo desejo de fruir o proibido. O reservado. O quase eternamente escondido.
“Ela trouxe da feira não foi
Quim”? Perguntou o mano. E eu respondi, entre o prazer da degustação e o medo
de ser apanhado em falta. Talvez o mesmo medo que assaltou Adão ao ouvir os
passos do Senhor no jardim do paraíso:
“Não mano. Essa é lá do pato
branco”!
É isso! Se a apropriação
indevida de um bem que nos foi previamente negado é pecado, subtraímos o caqui
indevidamente. Devoramo-lo em segredo e sentimos prazer em fazer isso.
Se a mãe tivesse poder de
expulsar-nos do paraíso, um dia nossos descendentes diriam que a fruta do
pecado é realmente o caqui.
sábado, 28 de novembro de 2015
ATÉ QUE A MORTE MORRA E NÃO NOS SEPARE
A chuva fina esbarrava no para-chuva. Protegia
a cabeça, mas encharcava os passos da moça. Os pés congelando, o vestido que
ela usava não combinava com botas. Descobriu no meio do caminho: sapatilhas são
confortáveis, não nos dias frio. Era preciso enfrentar o congelante dia e
esperá-lo na estação, chegaria onze horas. Ela imaginou como ele estaria:
engordara, emagrecera, estaria mais alto, abriria um sorriso de reencontro? A
moça entrou na estação, pensou no Adoniran Barbosa. Encolhendo o guarda-chuva
cantou para si mesma: “... Não posso
ficar nem mais um minuto sem você”. Ela tinha mãos suadas, olhos de espera
e coração ansioso. Os pensamentos foram interrompidos pelo celular. Era a sua
mãe ligando para saber os detalhes da chegada dele. Sair, enfrentar o frio para
esperá-lo, era tudo que podia fazer para eliminar a ansiedade. Era ela da idade
de onze anos quando o conheceu, ficaram logo amigos. A necessidade de
acompanhar os seus pais o deixou para trás. O seu pai fora transferido para
outro país, clube novo. Ótimo para a sua mãe, que conseguiu trabalho na área de
sua formação acadêmica. Bom para ela, que poderia visitar lugares cenográficos
e ainda ter acesso aos melhores shows de rock sem ter que viajar quilômetros para
isso. Seis meses sem vê-lo aumentavam em grande porção a falta dele. Ela
insistiu tanto com os seus pais que eles permitiram o Riki vir morar com eles
no apartamento. Nos últimos anos, mudaram tanto de lugar, ficou difícil
aceitá-lo como um membro da família. Desde que ela o conheceu, nunca puderam
ficar muito tempo juntos, havia sempre uma viagem, um lugar novo para morar. O
pai estava encerrando a carreira. Ela não entendia a razão do seu pai trocar
tanto de clube. Ele era um grande jogador de futebol. A sua mãe, psicóloga,
atendia jogadores com queda de rendimentos. Riki chegaria no metrô das onze.
Ela abriu o zíper da sua blusa. Seu corpo era quente, no frio que jorrava
ansiedade. O metrô foi passando, os vagões foram passando e passando e
passando. Chegou o oitavo. Uma porta abriu e pessoas saltaram como se fossem
vomitadas pelo veículo. O poodle abriu um sorriso quando a viu. Ela ficou de
joelhos e o pegou no colo, como uma mãe pega um filho. Riki, não sabendo falar,
latiu e lambeu o rosto da sua dona.
♫
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
EM SETE ATOS - POESIA
Elijanique Savil
Viver,
Encontro ineVitável
De um verbo só.
Ato não conjugado
Mais perfeito.
Olhei claramente,
Logo Vi.
ver, infinitivo.
Meu presente do olhar,
Sensação de poder,
ser onipotente,
estando há dois tempos
em um lugar
na Vida.
ver?
Vi.
E daí?
É bom ver,
Ainda que imperfeitamente.
Não Vi na verdade.
E onde mora
O mistério do
♫
terça-feira, 13 de outubro de 2015
OSCAR NAKASATO: AUTOR DE NIHONJIN (ROMANCE) - ENTREVISTA: REVISTA POLIFONIA
OSCAR
NAKASATO: AUTOR DE NIHONJIN (ROMANCE)
E IMAGENS DA INTEGRAÇÃO E DA DUALIDADE -
PERSONAGENS NIPO-BRASILEIROS NA FICÇÃO (CRÍTICA E ANÁLISE LITERÁRIA)
Por
Osvaldo Duarte
O
objetivo da entrevista que segue é ouvir o escritor Oscar Nakasato[1]
e deixar falar a sua obra, especialmente o romance Nihonjin[2]
(2011), cujo sucesso merecido tornou o autor nacionalmente conhecido. O romance em questão está intimamente ligado a outro livro, Imagens da integração e da dualidade – Personagens nipo-brasileiros na
ficção (2010), obra de crítica e história literária. Esses textos,
entrelaçados em suas origens e motivações, mobilizam conteúdos e significados
simbólicos que extrapolam o campo das letras e são muito caros à história de
vida do autor. A substância literária de ambas tem, pois, motivação identitária
e investem em sondagens sobre a memória e a auto/étnico-compreensão cultural do
imigrante japonês e de seus descendentes, buscando delinear, e também afirmar,
um modo particular de representação.
O livro Imagens da integração e da dualidade estuda, a par da história social da
imigração japonesa, a presença de personagens nipo-brasileiros na literatura e
o modo como se dá a representação do processo de aculturação e integração dos
japoneses no Brasil. Realizado a partir de dez romances e três contos, o estudo
que fora a tese de doutoramento do autor chama a atenção para as imagens
literárias da tríade família, educação e trabalho, tidos como elementos
estruturadores do universo comportamental do imigrante, e mostra como o
nipo-brasileiro é retratado na literatura de forma ambivalente, como indivíduo
que se integra ao Brasil e se transforma e, ao mesmo tempo, como ser que se resguarda
em marcas da cultura japonesa.
Outra constatação do autor foi a escassez de romances brasileiros em que figuram tramas e personagens de ascendência japonesa. Essa descoberta – ou decepção, como ele sugere – tanto a ausência de figuras, como o modo dual e, via de regra, sem as nuances e contradições que dão sentido à vida, levaram-no a escrever Nihonjin. É fato, contudo, que já estava em curso na literatura nacional um movimento que tende a suprir essa carência; uma tendência que de certo modo coincide com a participação cada vez maior de nipo-descendentes na vida brasileira e com o aprofundamento das inter-relações culturais e afetivas. Nesse contexto de assimilações, alguns autores têm se ocupado em dar vida a esses personagens, com crescente aprofundamento psicológico e alguns momentos de protagonismo, longe, portanto, dos estereótipos que caracterizam as primeiras representações nipônicas na ficção brasileira, como as que se encontram no romance inaugural de Mário de Andrade, de 1927, e nos dois romances finais de Oswald de Andrade, de 1943 e 1945. Penso, por exemplo, num raio que se estende por três décadas, em obras como O jardim japonês (1986), de Ana Suzuki; Sonhos bloqueados (1991), de Laura Honda-Hasegawa; Sonhos que de cá segui (1997), de Sílvio Sam e O sol se põe em São Paulo (2007), de Bernardo Carvalho, entre outros. Mas nesse decurso, nenhum outro texto é tão singular quanto Nihonjin.
Concebido
como romance histórico, Nihonjin
narra a trajetória da família de Hideo Inabata por três gerações, entre as
décadas de 1920 e 1980, aproximadamente, tendo como motivação a saga dos
imigrantes japoneses chegados ao Brasil no início do século XX. O narrador,
neto do protagonista, está prestes a fazer o caminho de volta à terra de seus
antepassados e esse possível retorno que, em princípio, parece promover o
necessário ajuste de contas com a história de perdas e desencontros que por
tantos anos se impusera sobre aquela família, indicia – de forma emblemática –
os percalços da alteridade, já que o narrador, empenhado em expor as
iniquidades (exploração, violência, xenofobia) a que foram expostos os
imigrantes japoneses no Brasil, vive a expectativa de tornar-se um decasségui
brasileiro; mais uma vez estrangeiro, um japonês de outra pátria, no Japão.
Narrada a
partir de vozes e pontos de vista que se inter/entrecruzam,
a história se estrutura no intermeio de eixos de tensão, entre os quais os de
maior destaque são os polos da sujeição e da emancipação. Nesse campo de
contradições, situam-se os sentimentos dos imigrantes e dos seus descendentes
com relação ao Japão e ao Brasil, o conflito entre gerações e os enfrentamentos
ideológicos entre os nipo-brasileiros. De um lado, aqueles que apregoam o
insulamento como forma de preservação indenitária; e, de outro, aqueles que
defendem a integração com o universo cultural brasileiro. No polo da sujeição, há que situar a figura do
protagonista Hideo, um nacionalista inflexível que, a par do desejo de
realização pessoal, atende a um chamado do imperador japonês para que seus
súditos emigrem e retornem ao Japão com recursos para soerguer a nação em
crise. Mas a fortuna não vem, a esperança de voltar ao Japão se desfaz,
enquanto Hideo tenta viver e educar seus filhos à maneira japonesa. A sua
condição de homem, pai, marido e líder leva-o a subjugar aqueles que pela tradição
estariam sob sua influência, o que não decresce a sua humanidade, pois ele é
também uma vítima, seja pelo exílio forçado em que se encontra, seja pela
desestruturação de identidade ou por resguardar certos costumes e crenças que
não encontram diálogo na nova terra: culto extremado à nação, devoção cega ao
imperador, a quem julga ter origem divina e, consequentemente, a adesão mais ou
menos simplória e inconsequente às ideias da Shindo-Renmei[3].
O princípio emancipação, por sua vez,
representado principalmente pela visão de mundo dos irmãos Haruo e Sumie,
filhos de Hideo, não rejeita completamente os valores defendidos pela tradição
japonesa, embora, confronte-os. Esses personagens iconizam o processo de
formação de uma identidade nipo-brasileira, distinguindo-se de seus
antepassados pela incorporação de valores que lhes possibilitam enfrentar o
autoritarismo patriarcal, resistir ao insulamento social, e cultivar a
individualidade como fator identitário: Haruo identifica-se com a cultura
brasileira, tem consciência de sua condição de japonês-brasileiro e vivencia
isso. É, por outro lado, tão recalcitrante quanto o pai. Se um defende
intransigentemente valores coletivos, o outro é implacável na defesa de seus pensamentos,
rebela-se contra o nacionalismo exacerbado da Shindo-Renmei, e é assassinado. Sumie – por obediência aos costumes
– casa-se com um nihonjin e, após dez
anos de silenciamentos e obliterações, frustrada e infeliz, abandona a casa, os
filhos, o marido (honrado) para viver com o gaijin[4], que amava desde a juventude. Assim,
tendo violado os códigos do grupo, é rejeitada pela família, exilando-se do
mundo em que moldara toda a sua vida. Une-os, por fim, a dialética do ser e do
não ser: deixar de ser japonês, sem deixar de ser japonês; passar a ser
brasileiro, sem ser brasileiro e, se perdem a integridade, pois se revelam como
identidades sobrepostas e rasuradas, jamais perdem a integralidade e a rigidez
essencial: em seus mundos interiores não se apartam sujeito e objeto, homem e
nação, corpo e desejo e são tão inflexíveis que só a rasura, a fratura, o
despedaçamento do ser, revela-os por dentro – quebram-se para não se vergar.
Os eventos
históricos atuam duplamente como moldura e como estruturadores das situações
narrativas, da trama ao estilo. Com a demarcação dos limites historiográficos
da fábula, o narrador pode se concentrar na composição dos personagens – traço
diferencial do texto –, cuja funcionalidade é balizada pela contextura
sociológica experimentada. Para reunir e dar forma à sua matéria, faz incursões
pela história da imigração japonesa e por seus arredores afetivos, perscruta a
memória da família (cartas e fotografias antigas, oitivas), tudo lhe servindo
para sanar as lacunas do seu acervo memorial. Como lhe faltam sempre os liames,
serve-se da memória do ojiichan (avô)
já em dissipação, das histórias que o tio ouvira dizer e, como tudo ainda não
lhe basta para dar coesão à sua narrativa, vale-se da imaginação e da fantasia,
a fim de fazer progredir a narração. Assim, ao admitir que narra aquilo que nem
sempre sabe, estabelece um pacto de fantasia com o leitor, que aceita o jogo
dialético entre ficção e história.
Esse
comportamento do narrador, poder-se-ia dizer, aproxima-se em nível inventivo a
uma espécie de satisfação imaginária do
desejo: ao tentar compor o perfil de Kimie, a primeira esposa do avô, logo
nas primeiras linhas do romance, diz saber pouco sobre ela, embora interesse-se
por ela e pense nela “como personagem” (p.11). E, tendo se apossado de Kimie
como criação, pode vê-la e estar com ela através da imaginação ou da absorção
de outros pontos de vista: “Eu a
encontrei, primeiro, no navio, na longa viagem (...). Calada. Assim eu
a imaginei” (...)”. Assim como
Kimie, que enlouquecida, vê e sente a neve japonesa em meio a um cafezal
paulista, o narrador avista a sua personagem, num movimento que equaliza suas
vozes e modos de ver: ela, em estado de delírio; ele, em estado de criação, com
seu poder de onisciência transgressora e sua liberdade de escrevente.
Com a
elegância misteriosa e a contensão de um bonsai, este romance nascido de um
projeto crítico-analítico recupera a história sem a preocupação de revê-la
criticamente como sugerem algumas leituras do romance histórico, mas para
acrescentar à ficção nacional algo que ainda não existia. Por isso, a
entrevista que segue pretende ouvir o autor e deixar falar a sua obra, pois
interessa-nos menos a sua opinião do que os valores que o definem, isto é, os
valores literários por meios dos quais a sua obra se impõe.
ENTREVISTA
Duarte – Seu romance Nihonjin investe em um
tema pouco explorado na ficção brasileira. Esse tema, contudo, não parece ser
apenas um assunto de ficção. É, também, uma experiência complexa, como sansei, como pesquisador e como ficcionista.
Gostaria de começar pedindo a você que falasse um pouco dessa experiência.
Nakasato – A minha
história pessoal enquanto neto de imigrantes foi essencial na escolha do tema
de Nihonjin, e também da minha tese
de doutoramento. A banca da minha defesa na universidade me perguntou por que
eu escolhera aquele tema, e a resposta foi fácil: era uma forma de eu resgatar
a minha própria história. Talvez a banca esperasse uma resposta que envolvesse
questões acadêmicas, as quais, obviamente, foram importantes, mas a primeira
motivação foi pessoal. Essas duas experiências – da tese e do romance – me
ajudaram a entender melhor a história da imigração japonesa no Brasil e, por
conseguinte, a minha história. Foi um exercício de autoconhecimento.
Duarte – Qual foi
o espaço ocupado pela cultura nipônica em sua infância? Que outras culturas
estavam disponíveis e como elas se articulavam? Você certamente terá ouvido
histórias, músicas, folclore. Houve na sua infância a presença de uma
literatura oral japonesa?
Nakasato – Como
neto de imigrantes japoneses (meus quatro avós nasceram no Japão), a cultura
japonesa esteve muito presente na minha infância. No sítio onde passei meus
primeiros oito anos, meus vizinhos eram meus primos e meus tios, bem como meus
avós por parte de mãe. Portanto, minhas lembranças mais remotas envolvem
aspectos da cultura japonesa: banhos de ofurô
(nossa família sempre teve ofurô na
casa), teru teru bozu (bonecos de pano que fazíamos e pendurávamos em árvores em
dias de chuva para que ela cessasse), visita aos parentes no primeiro dia do
ano, apresentação de músicas e danças japoneses no kaikan, etc. Nesse contexto, devo ter ouvido lendas e histórias do
Japão, mas não me lembro. Eu tinha um pouco de contato com as famílias dos
colonos, que eram brasileiros. Depois, quando passei a frequentar a escola,
passei a conviver mais. A integração entre crianças é sempre mais fácil. Eu me
lembro de prepararmos fogueira em época de festas juninas. Nas noites de
sábado, íamos à casa do único tio que tinha energia elétrica para assistirmos à
televisão. Lembro-me de assistir à novela Irmãos
Coragem, de Janete Clair, clássico da teledramaturgia brasileira. Dessa
forma, naturalmente, a cultura japonesa e a cultura brasileira se faziam
presentes na minha infância, ocupando espaços distintos, mas complementares.
Duarte – E com
relação à literatura brasileira? Um dos traços da cultura japonesa é a
valorização dos estudos e da leitura.
Nakasato – Os
japoneses acreditam muito nisso: a dedicação ao trabalho e aos estudos são
motores de ascensão social. São também elementos importantes na formação de um
imaginário sobre os nipo-brasileiros e também indutores da interação desses
brasileiros na sociedade. Com relação à minha formação, a memória de leitura
mais antiga é um livro de Maria José Dupré, que foi, além de excelente
escritora, uma figura importante na difusão do livro e na valorização da
literatura infantojuvenil no Brasil. Quando eu li A ilha perdida – tinha 10 ou 11 anos – a história me impactou
porque, apesar de ter vivido num sítio até meus 8 anos, eu me identificava com
a cidade. E os protagonistas da história, Eduardo e Henrique, eram dois meninos
da cidade que se aventuravam numa ilha. Eu era um garotinho pacato e reservado,
vivia uma vida tranquila, por isso uma grande aventura, que envolvia
desobediência, ousadia e enfrentamento do proibido me encantou. Depois vieram
os romances de José de Alencar, Machado de Assis e Eça de Queirós, mas fazia deles
uma leitura superficial. Lembro particularmente da personagem Juliana, de O primo Basílio, cuja trama me fascinou.
Esses autores foram importantes na minha iniciação.
Duarte – Nihonjin
se inicia com uma evocação à memória. O narrador lamenta os apagamentos e
rasuras provocadas pelo tempo, mas o autor, por sua vez, sabe que essas são
também as artimanhas da invenção, já que ela se faz também pelo esquecimento: a
literatura tende ao trespassamento do factual, ao devaneio da verdade, ao
estremecimento das certezas, e leva à recordação inventiva, à fantasia
voluntária, que chamamos às vezes de memória. Então, em que medida essas
instâncias – ficção, história, perscrutação subjetiva – se encontram ou se
afastam?
Nakasato – É mais
ou menos desse modo, por aproximação e por afastamento, que o narrador de Nihonjin se comporta. Ele tenta a
historiografia usando procedimentos literários, mas nota-se também que o texto
se avizinha do que se poderia chamar de “ficção do eu”. É importante perceber
que o narrador, embora se proponha a contar a história de seu avô e de sua
família, não quer fazê-lo de forma objetiva, e privilegia a memória – a sua, a do
avô, Hideo, a do tio, Hanashiro, a memória coletiva. É um narrador
que assume o seu caráter subjetivo, que é, afinal, a condição de todo aquele
que conta uma história. É assim em toda narrativa. Em diferentes graus, sempre
há uma interferência do narrador. Em Nihonjin,
o narrador confessa essa interferência. Ele assume que inventa. Ele tanto
registra o que sabe, como preenche as lacunas com o que ouve, com o que
pesquisa e com o que intui. Há situações, enfim, que só podem ser apreendidas
pela imaginação. Pode-se dizer, então que há um entrecruzamento de perspectivas
e que a reconstrução histórica da imigração japonesa convive com o intimismo
lírico, num jogo entre as formas voluntárias e involuntárias da memória. Como
todo escritor, usei a pesquisa histórica, a memória e a imaginação para compor Nihonjin e transferi essas características para o narrador.
Duarte – A
fantasia faz parte da constituição humana do personagem, mas ele não abre mão
dos fatos concretos.
Nakasato – Sim,
para escrever sobre os colonos italianos, o narrador-protagonista recorre à
própria memória de livros de História do Brasil e de filmes a fim de preencher
as lacunas deixadas pela memória pessoal. A certa altura ele diz “Vovô se
lembrava pouco dos italianos [...]. Mas eu os conhecia dos meus livros de
história, dos filmes sobre a imigração italiana. Então pude vê-los: de manhã,
quando iam para o cafezal”. O narrador destaca também que recorre ao livro de
Tomoo Handa[5],
buscando fundamentos para contar a sua história. Às consultas a fontes
históricas tradicionais somam-se recordações do avô e do tio, situação que eu também
vivi. São fontes concretas – história oral.
Duarte – Além
disso, ele conta a história de sua própria família, o que implica, consequentemente,
um mergulho emocional. Conta também a favor dessa subjetividade o fato de que,
ao desvendar a história do avô, ele pode apossar-se de sua própria identidade.
Nakasato
– É verdade. Em dado momento, ao se referir à mãe, o narrador admite que a
mulher que traduzia em palavras talvez não fosse propriamente a mãe que
conhecera de verdade. Mas o que é a verdade para esse narrador, cuja memória é
também uma construção imaginária? A mãe traduzida em palavras talvez fosse uma
invenção sua, ou projeções de um homem que tentava compreender a mulher que
abandonara o marido e os filhos. Há, também, o distanciamento temporal, que
contribui para isso. O distanciamento dos fatos no tempo impede que as fontes
do narrador (o avô e o tio) se lembrem dos detalhes da história vivida. Mas a
história, enfim, é aquilo que se narra.
Duarte – Gostaria
de insistir um pouco mais no narrador. Parece que a feição metalinguística do
texto, que é, enfim, uma perspectiva autoral, está presente também no ponto de
vista do narrador. Além de fundir história e ficção, ele reflete sobre o
próprio ato de escrever.
Nakasato – Sim,
ele conversa com o avô, entrevista o tio Hanashiro, vale-se da leitura de Tomoo
Handa e diz ter a “mania de arquitetar com palavras”. Diz também que para
escrever precisa-se de tinta e papel, admitindo que todas as fontes e
estratégias são válidas. Uma posição bastante autônoma, e moderna, da atividade
de escrever. Por fim, numa tentativa de síntese, aponta para tudo isso e diz:
“eis a história”. Então, o que faço em Nihonjin,
através do narrador, é unir dois projetos, os quais se mostram compatíveis: o
de restaurar o passado e o de ficcionar.
Duarte – Algumas
resenhas e estudos sobre Nihonjin sugerem, com uma ou outra variante,
tratar-se de uma obra temática no entorno dos conflitos entre os makegumes e os kachigumes[6]. Penso que o livro trate do enigma que é a
existência humana: como aventurar-se na decifração da existência sem
arriscar-se? O livro iconiza o anseio humano de liberdade. Mas a que preço?
Sempre o isolamento, a perda, a morte?
Nakasato – Entendo
que sempre se correm riscos quando se busca a expressão identitária,
principalmente em sociedades opressoras. Os personagens Hideo e Haruo, pai e
filho, representam polos opostos no difícil processo de imigração e aculturação
dos japoneses e seus descendentes no Brasil. O primeiro, ultranacionalista,
recusa-se a aceitar a nova terra, e o segundo luta para se inserir nela como
brasileiro. O fato de Haruo colocar-se como makegume,
contrariando a orientação do pai e de grande parte da sociedade nipo-brasileira,
representa uma atitude libertária, coerente, aliás, com toda a sua trajetória,
desde a infância. O ápice dessa atitude ocorre na cena derradeira, quando ele
se recusa a se manter escondido e, mesmo sabendo do risco iminente de morte,
assume-se como autor do artigo em que reconhece a derrota do Japão na guerra. Quando
há o anseio pela liberdade, não importam os percalços, pois é na luta pela
autodeterminação que o homem se reconhece humanamente íntegro, quer dizer, é
impossível falar de humanização fora da liberdade.
Duarte – Há
também o caso da personagem Sumie.
Nakasato – Sim, o
caso de Sumie é ainda mais contundente. Ela é “filha”, “irmã”, “esposa” e
“mulher”. E, sendo mulher, é obrigada a se ajustar às regras que a hierarquia
familiar e a cultura japonesa lhe impõem, anulando qualquer desejo pessoal. Por
isso, a atitude extrema de abandonar filhos e esposo japonês para viver com um gaijin significa não somente um
desrespeito à tradição de união intrarracial, mas afronta a uma cultura que
considera a família a célula matriz da sociedade. Para conquistar a felicidade
ao lado do homem que ama, ela não renuncia somente ao marido, aos filhos, aos
pais e aos irmãos, mas também a um passado, a uma cultura. As atitudes de Sumie
e Haruo, com as consequentes perdas, dizem respeito à assunção de seus
destinos, de suas identidades, de seus corpos. Sim, tudo aí é incursão
existencial.
Duarte – A certa
altura do livro o narrador cita Cassio Kenro Shimomoto. Poderia falar um pouco
sobre a presença dele no romance? Que mensagem quis transmitir ao trazer para o
texto o autor de um famoso artigo que toca de forma vibrante e muito avançada –
o artigo é de 1935 – em questões de mentalidade e de identidade Nikkei? A
publicação desse artigo gerou muita polêmica.
Nakasato – Cassio
Kenro Shimomoto era um homem culto, japonês que chegou ao Brasil ainda bebê e
se tornou o primeiro nikkei a se
formar em Direito no país. Quando o descobri nas minhas pesquisas sobre a
imigração japonesa e o processo de aculturação dos japoneses e seus
descendentes no Brasil, o personagem Haruo já estava delineado. Mas percebi a
semelhança entre os dois e, então, resolvi “aproveitar” o Cassio Shimomoto de
alguma maneira, e aproximar a ficção e a realidade.
Duarte – Ambos
fazem verdadeiras proclamações de liberdade.
Nakasato – Sim,
este é um dos pontos de ligação entre eles. Veja o que diz Cassio Shimomoto no
artigo de 1935: "somos brasileiros, respeitamos o Japão, como pátria de
nossos pais, porém como brasileiros devemos amar o Brasil". Eu o cito no
romance como amigo de Haruo em função dos aspectos comuns: ambos defendiam a
brasilidade dos nipo-brasileiros, manifestavam publicamente suas posições e,
com isso, enfrentavam a hostilidade dos ultranacionalistas japoneses que viviam
no Brasil.
Duarte – Cassio
sofreu retaliações, e foi perseguido politicamente.
Nakasato – Foi
muito perseguido, e Haruo foi assassinado por admitir que o Japão perdera a
Guerra. Por isso a alusão a Cassio é importante em Nihojin. Veja que a reflexão sobre a identidade do nipo-brasileiro
é central no romance. Em uma época em que havia, de um lado, imigrantes e
filhos de japoneses que defendiam entusiasticamente a nacionalidade
nipônica e o caráter divino do imperador, e, de outro, brasileiros que
criticavam e rejeitavam os nikkeis
por considerá-los enquistados em redutos particulares, Cassio ousa enfrentar os
dois lados. Por ser um personagem emprestado da vida real, sua participação
imprime a Nihonjin um caráter
genuíno, embora a minha proposta tenha sido realizar uma leitura subjetiva da
realidade histórica. Por outro lado, não quis explorá-lo de forma panfletária,
daí a sua inserção acanhada no enredo, mesmo que suas posições tenham um valor
social extraordinário.
Duarte – Linda
Hutcheon (A Poetics of
Postmodernism, 1988) afirma que obras
literárias são capazes não apenas de resgatar o passado, mas também de revisar
os acontecimentos. Outro teórico, Fredric Jameson, num ensaio desafiador (O romance histórico ainda é possível?, 2007) afasta essa possibilidade, tendo como
argumento a inconciliabilidade entre a propensão para o entretenimento que
caracteriza o romance pós-moderno e o compromisso com a construção identitária
que distingue a vertente da ficção histórica. Considerando essas reflexões
sobre o romance contemporâneo, seria possível considerar o lugar que o seu livro
já ocupa ou pode ocupar na ficção brasileira contemporânea?
Nakasato – Realmente
se percebe, hoje, uma busca pelo entretenimento fácil na literatura, bem como
na televisão, no cinema e no teatro, mas devemos lembrar que o entretenimento é
a função básica da arte. O que me preocupa é a superficialidade, a ditadura do
riso sem esforço, a banalização da lágrima. Espero que os leitores situem Nihonjin em outro patamar, embora eu
queira, sim, que se divirtam, que chorem, que tenham uma experiência estética
com a sua leitura. Nihonjin é
assumidamente subjetivo, por isso não sei se se ajusta exatamente no conceito
de romance histórico, que requer um enquadramento mais realista. Ao mesmo
tempo, em Nihonjin, a História não é somente um pano de fundo para um palco onde
atuam os personagens. A sua interseção (dos personagens) é realizada
considerando-se os eventos da História, que os marca decisivamente. Nesse
aspecto, Nihonjin está impregnado de
História, cuja presença não é incompatível com o entretenimento. Por outro
lado, o fundamento histórico de um romance não justifica a sua leitura; ninguém
precisa ler Nihonjin para conhecer os
imigrantes japoneses e seus descendentes e o processo de inserção desses indivíduos
na sociedade brasileira. Há bons livros de História, Antropologia e Sociologia
que informam e discutem esses tópicos com propriedade. Além disso, concordo com
Linda Hutcheon quando diz que uma obra literária pode resgatar o passado – o
que penso ter realizado com Nihonjin
– e revisar a história, embora, no meu caso, não tenha tido a intenção de fazer
nenhuma revisão, muito pelo contrário, pois usei o que encontrei na História
oficial para subsidiar a minha história (ou estória, para fazer a diferenciação
proposta por Guimarães Rosa).
Duarte – Quer
dizer, então, que o subjetivismo da ficção moderna não seria um impeditivo para
que se dê credibilidade à dimensão histórica na literatura. O texto literário
incorporaria, assim, a dialética humana da conjunção do plano histórico e do
plano psicológico.
Nakasato – Sim. Essa
conjunção é fundamental. É nela ou por meio dela que o leitor pode se
reconhecer em sua completude. O romance histórico, que realiza um diálogo entre
a realidade e a ficção, sempre teve leitores fieis que gostam de interagir com
elementos da história oficial. São leitores para os quais a verossimilhança se
materializa melhor a partir de dados concretos. Quanto ao subjetivismo, pode
ser trabalhado como mais um ingrediente para a credibilidade. É por meio das
investigações subjetivas que o leitor tem acesso ao mundo interior dos
personagens, assimila suas vivências, dramas, sonhos e se reconhece como ser
humano.
Nakasato – Com
certeza, Nihonjin reforça essa tese.
Haruo, que na infância é castigado pelo pai por assumir que tem coração
brasileiro, reconhece, depois, que se orgulha de ser “um brasileiro filho de
japoneses”. E no último capítulo, o narrador, brasileiro e neto de
japoneses, diz que “ir ao Japão é quase um retorno”. Sua imaginação antecipa os
fatos e, então, ele se vê no Japão: “na primeira oportunidade me desvencilharei
dos sapatos, pisarei a areia branca e sentirei um contato antigo, os pés
revivendo o toque, moldando-se a formas (...) ignoradas pelo tempo, (...) me
sentarei num campo de cerejeiras brancas (...), irei aos pés do monte
Fuji, olharei o pico coberto de neve e o reconhecerei, que será um reencontro”.
O narrador e Haruo são dois personagens que sintetizam, em suas
individualidades complexas, a ideia da dualidade que caracteriza o brasileiro
descendente de japoneses.
Duarte – Imagens da integração e da dualidade é
a sua tese de doutoramento, sim? Quando
é que o problema da tese se transforma em
tema para o ficcionista? Parece-me que partes dos dois textos foram escritas ao
mesmo tempo. Poderia falar sobre isso? Como acontece nas artes plásticas,
parece que um texto serviu de estudo para o outro. Em um, o exame das
personagens nipo-brasileiras na ficção nacional e o modo como essas personagens
se constituem como seres sociais e, no outro, uma tentativa de construir
personagens mais humanos.
Nakasato – Na
minha pesquisa de doutorado, constatei que a literatura brasileira, com poucas
exceções, ignorava a presença do japonês e seus descendentes, enquanto outras
etnias, como a italiana, eram bem representadas. Sendo neto de japoneses e
aficionado da literatura, a tímida presença de nikkeis na nossa ficção me incomodou. Assim, tanto a tese de
doutoramento quanto o romance Nihonjin
me levaram a resgatar a minha origem étnica e a minha história, que se confunde
com a história de tantos outros descendentes de japoneses. Pude compreender,
então, que o passado – não somente aquele que alcanço através da memória, mas
também aquele que não vivi, mas faz parte da minha constituição enquanto
indivíduo histórico – é essencial para compreender quem eu sou. Essa foi a minha
maior motivação para escrever Nihonjin.
E as pesquisas sobre a imigração japonesa que havia feito para a tese foram
providenciais, pois as usei no romance. Mas a tese ficou pronta antes. O
romance – continuei trabalhando nele por quase cinco anos.
Duarte – Edward
Said, no livro Reflexões
sobre o exílio e outros ensaios (2003,
p. 46) descreve o exílio com “uma fratura
incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro
lar”, e atribui a ele uma “tristeza essencial” que “jamais pode ser superada.”
Como pesquisador e como romancista que refletiu sobre a história de imigrantes,
você corroboraria esse ponto de vista? Como pensa a questão?
Nakasato – Hoje o
impacto que decorre da imigração é menor, considerando-se a facilidade de contato
com o país de origem e mesmo com a possibilidade de se adquirir produtos
estrangeiros onde quer que se esteja, mas nas primeiras décadas do século
passado a situação era bastante diferente. Na minha pesquisa sobre imigração
japonesa, marcou-me uma passagem de Tomoo Handa, escrita em resposta às
críticas sobre o enquistamento dos japoneses, considerados, então,
inassimiláveis. Handa avalia que “não terá havido imigrante que tivesse
abandonado seus costumes mais que os japoneses (...). Desde sua chegada, teve
que morar numa casa sem tatame, tirar o quimono, jogar fora a tigela e o hashi, beber café ao invés de chá”. Ele
me chamou a atenção para o problema da perda de identidade, que começa mesmo
antes do imigrante perceber que se tornou um exilado. Ao corpo acostumado ao
tatame, ao chá e ao peixe, impõem-se o colchão, o café e a carne suína. A essas
imposições vão se somando outras, que transformam o imigrante em um sujeito
mutilado. Em inglês, usa-se o termo uprooted
na referência ao imigrante, que caracteriza aquele que perdeu as suas raízes. É
o que ocorre com alguns personagens de Nihonjin,
principalmente Kimie, que morre em função desse processo de desenraizamento.
Duarte – Podemos
refletir um pouco mais sobre essa questão? Citei o livro do Edward Said porque
o problema do exílio me parece pouco discutido no contexto das imigrações. Essa
questão atinge de modo muito violento os valores individuais de liberdade,
pertencimento e identidade; ele dilacera corpos culturalmente constituídos,
como nacionalidade, territorialidade, família. Penso na tragédia pessoal vivida
por alguns imigrantes que, ao tomarem consciência de que não teriam condições
de regressar ao Japão, deixam de ser imigrantes (com perspectivas de regresso)
e tornam-se exilados.
Nakasato – Sim,
isso é verdade. É o caso da personagem Kimie, como já falamos, e também de
Hideo, prisioneiro da própria inflexibilidade. Para Hideo, a tragédia do
desenraizamento, da perda de identidade, ratifica-se quando percebe que não
retornará mais ao Japão, transformando-se de imigrante em exilado. O caso de
Kimie é ainda mais pungente, pois a cessação da dor, se se pode dizer assim,
vem pela loucura e pela morte. Há uma passagem no final da primeira parte do
romance que iconiza esse estado de perdição. É a sua cena derradeira: doente,
enlouquecida pela tristeza, febril, Kimie corre em meio ao cafezal, em plena
madrugada. A morte física chega lentamente, mas o exílio já a matara antes.
Duarte – Estamos
falando da imigração que se transfigura em exílio, mas ela pode também se
transfigurar em banimento se é imposta pela necessidade de sobrevivência. Mesmo
assim, esse exílio-banimento, que dilacerou famílias e dissolveu
esperanças, parece ter se convertido em algo positivo pelos japoneses que
permaneceram no Brasil.
Nakasato – Creio
que sim. Os japoneses, apesar da mutilação e da perda de identidade impostas
pela imigração, conseguiram manter muitos aspectos da cultura do seu país. A
união em torno dos costumes foi para os japoneses uma forma de sobrevivência,
pois o distanciamento cultural, notadamente no que diz respeito à língua,
impunha o isolamento e, consequentemente, um grande sofrimento. Além disso, um
traço que caracteriza os japoneses é que eles se mantiveram firmes na dedicação
ao trabalho e aos estudos, o que promoveu uma ascensão social e o respeito por
parte da sociedade brasileira. Em Nihonjin,
ocorre o que a socióloga Ruth Cardoso atesta em sua tese de doutoramento: a
mobilidade física, ou seja, a mudança de endereço, implica mobilidade social
para os nikkeis. Hideo trabalha
arduamente e se muda da fazenda, onde era colono, para se tornar arrendatário
em outra propriedade, depois se transfere para a cidade de São Paulo para ser
proprietário de um comércio. Nesse sentido, pode-se dizer que as dificuldades
iniciais serviram de mola propulsora para algo mais positivo.
Duarte – Nihonjin
narra um drama humano que se define
pelo entrechoque de gerações e interseção de culturas. Um drama, aliás, que
você relata ter vivido: “ser diferente e ser igual ao mesmo tempo”, ou “ser
japonês em casa e brasileiro fora de casa”. Fale um pouco sobre isso: essa
dialética do viver que – conforme concebida em seu romance – pode fragilizar o
sujeito, encrudelecer o indivíduo e, também, levar à emancipação.
Nakasato – É
importante ressaltar essa palavra: emancipação. Na entrada da adolescência e na
adolescência, ser um “japonês” – porque era assim que me viam, porque eu tinha
cara de japonês – em meio aos “brasileiros” era um problema. Embora me vissem
desde a infância como o japonesinho inteligente – e inteligente porque era
japonês – eu desejava a desenvoltura e a espontaneidade dos “brasileiros”. Eu
me sentia, sim, fragilizado nessa situação. Tinha dificuldades em aceitar a
minha condição nikkei e buscava me
afirmar como “brasileiro”. Depois, descobri que a minha condição de
nipo-brasileiro era a minha real identidade, ou seja, um ser híbrido, com
fortes influências da cultura japonesa e da cultura ocidental. Passei, então, a
tirar proveito dessa situação. A minha tese e o meu romance são exemplos dessa
virada. Hoje eu sei que foi essa dialética japonês/brasileiro que fez o Oscar
ser quem ele é. Sou aquele sujeito que gosta de Chico Buarque e Marisa Monte e
procura musicais de Enka no Youtube,
que adora paçoca, churrasco, missoshiro
e tempurá.
Duarte – O
romance apresenta elementos construtivos que chamam a atenção pelo valor
funcional e estrutural. Penso, por exemplo, nos marcadores temporais (ou
geracionais) implícitos, como são as formas de tratamento familiar em japonês e
os nomes das personagens. Os primeiros dão ao texto o aspecto de informalidade
cotidiana que se acentua à medida que o tempo avança e o Japão parece cada vez
mais distante para a família Inabata. Quanto aos nomes, é na terceira geração
dos Inabata que aparece um nome de origem ocidental, pronunciado de forma
afetiva: Carlinhos – tudo indicando a passagem do tempo e a aculturação. Como
chegou a esses recursos?
Nakasato – Já me
criticaram por usar termos da língua japonesa no meu romance. Já me disseram,
também, que eu deveria incluir em Nihonjin
um glossário. São termos comuns, de uso doméstico, que sugerem informalidade.
Seu uso é proposital, e eu penso que o estranhamento provocado por esses termos
é importante para conduzir o leitor ao universo nipo-brasileiro. Ao mesmo
tempo, acredito que esses termos não sejam tão numerosos que engessem a leitura
do romance. Quanto aos nomes, naturalmente os de origem japonesa prevalecem,
pois se conta a história de uma família de imigrantes japoneses. Carlinhos é,
na verdade, da quarta geração (bisneto de japoneses), é yonsei, considerando o imigrante, issei, como a primeira geração. A escolha dos nomes próprios
reflete, sem dúvida, o processo de abrasileiramento dos descendentes de
japoneses. Isso ocorre, na verdade, já a partir da terceira geração. A minha
própria família é exemplar nesse aspecto. Meus pais, que são da segunda
geração, foram registrados somente com nomes japoneses. Minhas irmãs, que são
mais velhas que eu, também foram registradas somente com nomes japoneses, mas
foram obrigadas a adotar um nome ocidental para serem batizadas. Já meu irmão e
eu, os mais novos, fomos registrados com nomes compostos, um ocidental e outro
japonês. É o que ocorre com os nomes dos filhos do narrador de Nihonjin: Pedro Hideki e Maria Hisae.
Duarte – Para encerrar, gostaria
de voltar às questões de formação e educação. Enquanto isso, você poderia falar
sobre a literatura atual? Fala-se em crise, mas já há quem diga que se trata de
uma crise de abundância: publica-se muito e em tomos cada vez mais volumosos,
como se escrever fosse um exercício de tautologia. Considerada a média do que
se publica, haveria saída para o romance fora do entretenimento? Qual seria o
lugar do escritor hoje? E o lugar do romance?
Nakasato – O
entretenimento fácil tem “ganhado” escritores que se preocupam com os números
da vendagem, e há aqueles que têm ânsia em publicar. Dessa forma, realmente, os
números são elevados em se tratando de publicação. Ao mesmo tempo, o
entretenimento centrado na imagem conquista cada vez mais adeptos. Fora desse
contexto, há bons escritores, para os quais sempre existe um pequeno público
que consegue ler nas entrelinhas, que não se contenta com a camada superficial
do texto e que, ao mesmo tempo, não confunde profundidade com uma moda
existente de hermeticidade. Um escritor produz reflexão, ele faz todo um
trabalho nos bastidores antes que o texto seja apresentado, mas eu sigo
acreditando que a literatura deve, primeiro, oferecer entretenimento. Por isso,
em se tratando de romance, uma boa história bem contada é fundamental. Creio
que os concursos literários, cujos números vêm aumentando, têm colaborado para
dar visibilidade a bons escritores e a bons livros, os quais, fora desse
contexto, ficariam restritos a pequenos grupos de leitores. A internet também tem se mostrado como uma
possível vitrine para bons textos
Duarte – Diz-se
que para se tornar um escritor é preciso ser antes um leitor. Penso que isso
interessa bastante aos educadores: que tipo de leitor se deve ser?
Nakasato – Eu
sempre digo isso àqueles que me pedem fórmulas para se tornar escritor. Mas,
que tipo de leitor? Talvez a resposta seja: um leitor assíduo. Depois: leitor
não somente de romances, pois um aspirante a escritor deve estar informado
sobre quase tudo. A reflexão vem com a prática, já que as boas leituras levam à
reflexão, aos questionamentos e às dúvidas. A qualidade dos textos também é
importante, mas essa questão já é mais complexa. Também sempre digo que se deve
prestar muita atenção à vida. Ficar trancado em casa lendo livros não basta.
Duarte – Domo Arigato gozaimashita.
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SAID,
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2003.
Recebido em 30/06/2014.
Aceito em 30/07/2014.
Osvaldo Duarte
Docente
do Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da UniR e do Curso de Letras
(Campus de Vilhena). Líder do Grupo de Pesquisa Mapa Cultural - Centro
Interdisciplinar de Estudos em Cultura e Artes.
[1] Oscar Nakasato é professor, doutor em Literatura
Brasileira pela UNESP e escritor. Com sua obra de ficção, recebeu,
entre outros, os prêmios Benvirá (2011), Prêmio Bunkyô de Literatura (2011) e
Jabuti (2012).
[2]
“Nihonjin” corresponde ao adjetivo pátrio
“japonês”. É como os japoneses se referem a si mesmos.
[3]
Associação de caráter nacionalista criada
por isseis no interior de São Paulo
no início da década de 1940. Após o final da Segunda Guerra Mundial, seus
membros empenham-se em difundir a ideia de que o Japão saíra vitorioso,
punindo, mesmo com a morte, àqueles que propagavam a rendição japonesa.
[5]
Tomoo Handa é autor de O Imigrante Japonês: história de sua vida no
Brasil (São Paulo: T. A. Queiroz: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros,
1987), uma das fontes para a composição de Nihonjin.
[6]
Eram chamados makegumes os membros da colônia japonesa que difundiam a ideia de
que o Japão havia sido derrotado na Segunda Guerra Mundial; acreditavam também
que os imigrantes japoneses deveriam se adaptar à vida no Brasil. Por isso,
muitos foram sentenciados à morte e executados pelos kachigumes, cujas posições eram radicalmente opostas.
http://periodicoscientificos.ufmt.br/index.php/polifonia
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