Numa das
manhãs, à beira de dezembro, no trinta do mês que findava, me arranjei na
janela e lancei vista pela ribanceira da rua. Um homem descia com um cachorro.
Ambos freando os passos, forçando o corpo, evitando ser engolidos pela descida.
Após quinze minutos em espera, um ônibus parou, deixando parte da bunda em meu
olhar. A outra parte do veículo ficou escondida atrás de um sobrado. A rua do
meu lugar desembocava na avenida onde passavam os ônibus urbanos. Do alto,
observei com precisão de olhos os carros estacionando no barracão que recebia a
minha rua. Todos os dias a minha mãe me colocava na janela e eu observava cada
um que subia, mas as que mais rasgavam a minha atenção eram as pessoas que
desciam. Para subir, inclinavam-se para frente. Para descer inclinavam-se para
trás. Todos os dias eu lia na fachada do barracão de frente para minha rua: O melhor em tudo. Era o supermercado
mais importante da cidade. Abria um canto de riso quando via pessoas descendo
do ônibus e subindo a rua. As mãos cheias de sacolas. Um homem de terno puxava
uma mala e um desconhecido, com cara de vendedor de loja, trazia no ombro uma
bicicleta. Fechei os olhos para
idealizar o meu sonho. Me vi descendo a rua, subindo, descendo com os braços
abertos, subindo empurrando, devagar ou depressa, pedalando, sentindo o vento
batendo em meu rosto. Querer uma bicicleta me era sonho possível. Impossível me
era ter pernas para andar. Quando abri os olhos, o homem com cara de vendedor
já havia passado. Onde foi ele com a bicicleta? Perguntei e perguntei. Logo
notei: não era o meu ônibus, as pessoas descidas não eram as minhas pessoas,
mas era a hora do meu ônibus esperado. Esperei. Nem olhei o relógio para não
doer a espera. Havia outros ônibus e o meu pai com certeza chegaria em um
deles. Imaginei a minha bicicleta. Queria empiná-la como fazia o filho do meu
vizinho. Queria os pedais reluzentes como os pedais do meu primo. Queria mesmo
era subir nela e pedalar. Andar o bairro inteiro e conhecer o outro lado da
cidade, ir onde os meus primos não podiam ir, brincar na rampa de
bicicross. A tarde já descia quando vi
meu pai rompendo a subida. Uma caixa na mão. Era uma bicicleta desmontada? Sem fechar
os olhos idealizei a cor; azul metálica. A cada minúcia de chegada, a caixa
diminuía de tamanho e o meu sonho diminuía os sonhos. Meu pai entrou com um
sorriso que eu nunca consegui medir o tamanho. A minha mãe o abraçou de um
jeito que eu nunca entendi a força. Disseram quase em uníssono, com voz
entusiasmada:
— Filho, agora você vai poder andar! Conseguimos essas
pernas mecânicas para você.